segunda-feira, 9 de maio de 2016

MINGAU PARA DOIS

Lá fora, fustigando as árvores e o telhado do casarão, o vento é um prenúncio de temporal.
Cá dentro, na cozinha, a luz das velas deita sombras fantasmagóricas no chão, na mesa, nas paredes.
O velho prova o mingau do jantar, cospe, e empurra o prato:
            – Tira essa gororoba da minha frente!
            A moça balança a cabeça:
            – Deixe de birra, papai, e coma de uma vez...
            – Está surda, sua diaba? Tira isso daqui!
            Num gesto maquinal, a moça pega o prato e vai depositá-lo na pia.
            O velho se esparrama na cadeira, pronunciando coisas ininteligíveis.
            Repentinamente, uma mosca faminta, enorme, pousa no prato de Lucimara.
            Os olhos do velho, de rato, brilham de excitamento.
A moça retorna à mesa; a mosca alça voo rápido.
            Arzinho sarcástico, o velho diz:
            – Você viu?
            – O quê, papai?
            – A mosca. Lambeu sua gororoba aí e deu no pé.
            Lucimara faz uma careta, sentindo o estômago embrulhar.
            O velho desfere uma gargalhada:
            – Come, menina, come!
            – Pare com isso, papai. Não vou mais comer.
            Os dois ficam um instante em silêncio.
Depois o velho volta a falar:
            – Hoje é o aniversário de sua mãe, não é mesmo?
            – É, papai.
            – Quantos anos, hem?
            – O senhor devia saber.
            – Vai fazer um bolo bem bonito para ela, não vai?
            – Não... Não vou.
            – Mas por que, filha? Por quê?
            – Porque mamãe está morta!
            O velho arregala os olhos, leva a mão ao peito:
            – Morta?!
            – Sim, papai. O senhor a matou!
            – Não!
            Aí o velho desembesta a chorar:
            – Não... Eu não a matei, juro por Deus!
            Lucimara acerca-se dele, faz um pequeno carinho em seus cabelos ralos.
            E então o abraça, entre lágrimas:
            – Droga, papai, por que nunca consegue se lembrar?
            E, em seguida, esbofeteando-o:
–Por que, por que, seu desgraçado?


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