quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A ESTRANHA MULHER QUE PASSA

Ela passa todos os dias na calçada. Não é uma mulher comum – dessas que costumam passar em frente à minha casa. Decididamente não é.
Primeiro – que ela usa uns saltos enormes. (E aqui se anda descalço, no máximo se usa alguma meia esburacada.)
Segundo – que ela usa um vestido muito curto e justo. (E aqui todo mundo anda nu, ou quase nu, é mais que natural.)
Terceiro – que ela usa um lenço amarrando os cabelos. (E aqui ninguém usa coisas desse tipo, pois vaidade é troço que não se tem.)
Mas a mulher é muito magra – e nisso reside sua única semelhança com os moradores desta cidade.
Fico espiando da janela. Ela passa olhando sempre em frente – parece que vai desfilando numa passarela, é uma top model, dessas que ganham milhões no exterior.
No começo eu ficava só olhando. Mas – de tanto olhar – comecei a me interessar por esta mulher, a desejá-la nos seus passos apressados.
Quero que ela me veja – assobio quando ela passa. E nada. Eu entendo: minha casa está caindo aos pedaços – e a mulher é linda demais para isso.
Mas eu a espero mesmo assim. Torço por isso há 20 anos, quando – por amor – resolvi tirar minha vida com uma bala na cabeça...
Agora – amo essa doce estranha! Nesta cidade de almas penadas onde pairo, ela veio atenuar meu suplício, me trazer um pouco de alegria.
Vou traçar um plano para trazê-la para junto de mim. É urgente – e ela vai ter que vir. Caso contrário, vai voar diabo para tudo quanto é lado.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

É O DIABO!


Por Deus, gente – não sei o que deu nele pra sair assim de casa.
Só sei que acordei de manhã e nem sinal dele na cama comigo.
Procurei no banheiro, na cozinha, no quintal – e nada.
Liguei pro trabalho dele, pros parentes, pros amigos – e nada também.
Aí pensei: tem vadia na jogada.
Só podia ser alguma mulher – se bem que em cinco anos de casada nunca tive motivos pra desconfiar uma gotinha que fosse.
Mas é assim mesmo – quem conhece o que se passa na cabeça dos outros?
A gente cuida, dá roupa limpa, faz comidinha gostosa, dá carinho e tudo o mais – e um dia o diabo aparece e não quer nem saber: leva embora o que não pertence a ele, o que é nosso por direito.        
Agora vivo sozinha.
Nunca um telefonema, um bilhete, uma explicação.
Esperei anos e anos por isso.
Até me cansar, aceitar que as coisas são como são e ponto final.
Homem nunca mais arranjei.
À missa aos domingos não fui mais.
Vivo trancafiada em casa – o máximo que saio é pra comprar comida ou alguma roupa nova que acabo não vestindo.           
Não sou uma mulher triste.
Acho que não.
Sou – digamos assim – uma pessoa anestesiada, indiferente.
Nada me dói – nem a minha dor, nem a dos outros.
O mundo pode acabar daqui a dois minutos que não estou nem aí.
Ouço meu rádio, vejo alguns programas na TV, fumo meu cigarro quando me dá na telha – e vou vivendo.
Até o dia que Deus quiser.
Até o dia em que meu “benfeitor” resolver me deixar morrer de fome...
Pode acreditar – eu tenho um benfeitor; ou benfeitora, sei lá!
Eu não contei ainda, mas existe alguém que nas horas mais invisíveis do dia ou da noite enfia um envelope com dinheiro embaixo da minha porta.
Nunca descobri de quem se trata...
Pode ser qualquer pessoa.
Qualquer uma.
Até meu ex-marido... por que não?
Não, não e não!; prefiro nem pensar nisso.
Pra mim, o safado está e deve continuar morto – bem morto e bem enterrado.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

AH, ESSES NOSSOS AMIGOS!

A gente se encontrou no meio da rua. Levei um baita susto.
– Ei, cara!
O “cara” em questão se chamava Leo, e há tempos era meu amigo – não sei precisar exatamente desde quando.
Depois do abraço apertado, fomos andando e conversando.
– Como vão coisas, Alfredo?
– Mais ou menos...
– Mais pra mais, ou mais pra menos?
– Mais pra mais, sei lá...
– Me diz aí, o que você tem feito da vida?
– Nada de novo. A mesma rotina, a mesma vidinha de sempre...
– A mesma mulher também?
– Quem era mesmo? Faz tanto tempo que a gente não se vê, desde que você tomou chá de sumiço, que eu nem lembro quem era a “dona” da vez!
– Não era a... Lurdinha?
– Sim, era aquela pilantra mesmo.
– Pilantra?! Mas ela era tão legal!
– Legal no começo. Depois é que a peste mostrou as garras...
– O que aconteceu?
– Ela veio morar comigo, você sabe...
– Pois é... Me admirei muito da tua mãe ter aceitado!
– Aceitado? Qual o quê! Vivia dizendo pra eu me sair dela. Falava que tinha um mau pressentimento...
– E então?
– E então que eu devia ter escutado o conselho. Na primeira oportunidade, a sacana roubou o dinheiro que mamãe escondia debaixo do colchão...
– Foi mesmo?
– Ora se foi! Era muita grana, nem eu desconfiava que mamãe guardava aquilo tudo.
– E que fim levou a... ladrona?
– Se escafedeu. Nunca mais foi vista por aqui. Que nem você...
– Epa, mas eu estou bem aqui na sua frente, rapaz!
– É. Mas um dia deu no pé, né, seu doido? Justo nos dias em que a Lurdinha sumiu também... Me diz aí, por onde andou, esse tempo todo?
– Por aí...
– Por aí, onde?
– Fui pro Sul...
– Fazer o quê lá, rapaz, assim de repente?
– Me deu na telha, sei lá... Mas agora estou de volta, não vê?
– Vejo, sim. Sua tia é que deve estar radiante de felicidade.
– Também não exagera, né!
– Você até engordou, cara; você, que parecia um palito de picolé chupado!
Rimos juntos. Nos demos tapinhas nas costas.
Depois o Leo fez uma cara séria de dar medo.
– O que foi?
– Preciso te falar uma coisa, Alfredo...
– O quê, fala aí!
– Esse tempo todo, eu estive com a Lurdinha... Na verdade, viajei com ela.
– Como é que é? Você foi cúmplice do roubo?
– Não, claro que não! Eu só soube depois...
– Cara, é melhor você começar a se explicar!
– Calma, eu explico. Calma.
– Fala logo!
– Foi assim: naqueles tempos, a gente quase não se via, lembra? Você vivia viajando com seu chefe, sei lá. Pois então: uma vez, a Lurdinha foi lá em casa... Disse que tinha ganhado uma bolada, herança de uma tia rica, e queria viajar pra bem longe. Aí, sem mais nem menos, perguntou se eu topava ir com ela. Fiquei sem entender patavinas! Perguntei: e o Alfredo? Então ela fez uma cara assim meio triste e disse que vocês tinham rompido, acabado tudo...
– Desgraçada! Onde ela está agora, quero acertar as contas com ela!
– Ficou lá no Sul. Trabalha de garçonete, foi do que a gente passou a viver, quando o dinheiro da tua mãe acabou... Mas eu posso te garantir, Alfredo: só na semana passada foi que ela me contou o que fez...
– Por isso que você voltou? Podia ter ficado com ela até o fim da vida. Ia estar muito bem acompanhado!
– Eu não podia viver com ela, depois de saber da verdade. Além disso, estava com saudades da família, dos velhos amigos...
– Você é mesmo um sacana, Leo. Sempre foi!
– Isso é um elogio?
– Sacana. Sumir assim do mapa. Isso não se faz com um amigo, cara. Eu devia era te encher a cara de porrada!
– Melhor me pagar uma cerveja, não acha?
Tornamos a rir. Nos demos mais tapinhas nas costas.
O Leo perguntou:
– E sua mãe, cara, como está?
– Morreu tem dois meses...
– Sinto muito...
– Morreu de desgosto. Nunca perdoou a Lurdinha.
– ...
– Agora, imagina só se ela soubesse que você andava metido com aquela vagabunda!
– Eu não desconfiava de nada, Alfredo. Juro por Deus. Ela me convidou e eu fui, foi só isso!
– Está bem. Eu acredito em você.
– E então, me paga uma cerveja?
– Você não toma jeito mesmo, né?
Ele sorriu:
– Paga ou não paga?
– E eu tenho escolha? Me fala!
Ele me pegou pelo braço e nos dirigimos ao primeiro bar que avistamos.
Ele sempre sorrindo.
Eu também.
Daí que, enquanto a gente bebia e conversava, foi me batendo uma tristeza muito grande. Uma tristeza como nunca eu tinha sentido antes, pode crer.
Até hoje, anos depois daquele encontro na rua, não consigo entender o que aconteceu comigo naquela noite, ali no bar.
Só me lembro de ter saído de lá cambaleando com o Leo. Quando acordei, no dia seguinte, estava no sofá de casa. Havia umas manchas esquisitas em minhas mãos, parecia sangue... Estranhamente, eu não tinha ferimento algum!
Deduzi então que o Leo podia ter caído, já que estava mais bêbado do que eu, aí se machucou, e com certeza socorri ele.
Se foi isso mesmo, o certo é que o ingrato nunca mais deu as caras por aqui, pra agradecer.
Cheguei a ir na casa da tia dele, mas ela falou que nem sabia que o Leo tinha aparecido.
Pensei: o sacana deve ter voltado pra Lurdinha dele, outra vez...
Pois que fosse. Que fosse pra sempre.
Os dois se mereciam. Cambada ordinária.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

ÀS VEZES, O AMOR DÁ NISSO


De repente, no meio do beijo, ele para, olha pra ela e diz:
“Meu amor, você está morta pra mim!”
“Lá vem você com as suas lorotas, Arnaldo.”
“Não é lorota, Bia. Dessa vez, não. Pra mim, você está mesmo morta. Morta e enterrada. Já está até fedendo... Não sente?”
“Sinto. É claro que sinto! Sinto o cheiro dessa privada fedida que você não lava nunca. Nem quando me chama pra vir aqui foder com você.”
“Epa, eu não tenho mau hálito, gatinha!”
Bia estremece. Fica sem saber o que dizer.
Ultimamente, o namorado vinha repetido baboseiras como aquela...
Talvez ele esteja enlouquecendo, pensa ela, num lampejo.
E então sorri. E beija mais, e mais, e mais.
Até ficar com a língua doendo. De verdade.