terça-feira, 14 de agosto de 2012

NESTA DATA QUERIDA


Lorenzo. É este meu nome. Ontem foi meu aniversário. Trinta e dois anos. Tia fez um bolo pra mim. Também me comprou um presente. Uma camiseta amarela. Comi o bolo. Ri. Rimos. Aí às nove me arrumei. Botei perfume. Falei pra Tia que ia sair um pouco. Não volte muito tarde. Sim. Eu me preocupo. Sim. Então saio. Sem destino. Quem sabe pare na praia. Ou num prostíbulo. O tempo está abafado. O barulho infernal. As luzes me cegam. Tenho sede. Entro num bar. Peço uma cerveja. E outra. E mais outra. E todas as outras. O mundo começa a girar. Pago a conta. Vou levantar e tropeço. Derrubo a cadeira. O pessoal fica me olhando. Alguém ri abafado. Não ligo. Hoje é meu aniversário. Tenho o direito. Vão todos se foder. Eu devo gritar. Mas não grito. Não grito. Vão todos se foder. Todos. É. Eu devo. Mas saio e não grito. Lá fora chove fininho. Sigo pra casa. Às vezes erro o passo. Bato num muro. Ralo o braço. O sangue vem. Não é muito. Só um tiquinho. Quase nada.  Um leve ardor. Olho o muro. Muro. Murro. Murro no muro. Mas não. Beijo. Beijo no muro. Não sei por quê. Não sei. Não faço a mínima. Deve ser a idade. O tempo nos enfraquece. Nos desarma. Enlouquece. Há muito ando assim. Diferente. Um dia desses até chorei. Uma cena. A novela era das oito. Mãe e filho. Reencontro. Disfarcei. Tia podia ver. Acho que ela viu. Tia vê tudo. Tudinho. Tudíssimo. A hora que saio. Que chego. Quando vou à cozinha no meio da noite. Ao banheiro na madrugada. Não me chateio. Mãezona. Tudo é pra mim. Carinho. Dinheiro. Macarrão com almôndegas. Sempre foi. Assim desde que Mãe fugiu. Vadia. Eu tinha só cinco. Pai nunca conheci. Eu bem que perguntava. Mas Tia desconversava. Aos poucos fui esquecendo. Agora tanto faz. Pro inferno Pai. Mãe. Aquele gordo que me batia na escola. O pessoal do bar. O muro pro inferno. O muro que me feriu. Que beijei como se fosse uma mulher. Como se fosse Tia. Eu sempre a beijo. No rosto. Nas mãos. Nos cabelos brancos. Certa vez a beijei na boca. Eu era muito pequeno. Ela levou um baita susto. Sorriu. Mas disse que eu não fizesse mais. Perguntei por quê. Ela falou que isso não podia. Beijar Tia não. Namorada podia. Quando eu crescesse. Ficasse rapaz. Daí nunca mais a beijei na boca. Mas outros beijos eu beijo. Os que falei. O que mais gosto é na testa. Nos cabelos não tanto. Fica cabelo na boca. Incomoda. Tenho que cuspir. Detesto cuspir. Tenho nojo. E principalmente lembro. O falecido vivia cuspindo. Enchia a casa de cuspe. A sala. A cozinha. O banheiro. O corredor. Cuspiu até na minha mão. E ainda riu. Acho que foi de propósito. Ele disse que não. Tia também disse. Mas eu não senti firmeza. O traste nunca gostou de mim. Me fazia de escravo. Pedia água. Café. Pedia o fósforo pro cigarro. Isso tudo sentado. Os pés trepados no sofá. Na frente da televisão. Pense. Programa era só o dele. A gente não tinha vez. Nem Tia tinha. Não entendo como ela se casou com ele. Uma mulher tão boa. Tão bonita. Hoje ela envelheceu. É verdade. Mas ainda é bonita. Pelo menos eu acho. Acho mesmo. Eu a amo demais. Beijei minha primeira namorada e foi nela que pensei. Fechei bem os olhos. Me concentrei na menina. Era pecado. Não podia. Com Tia não. Depois beijei outras garotas. Várias. Um monte delas. Era o maior beijoqueiro da rua. Da cidade. Talvez mais. Quem sabe. Os meus amigos queriam meu segredo. Falava que não tinha segredo. E não tinha mesmo. Eu beijava e só. Mas elas gostavam. Todas. Tia foi a única que não gostou. A única. Mas ela não era uma qualquer. Era Minha Tia. Tia não podia. Qualquer outra sim. Tia não. Nem mãe. Nem irmã. Não sei. A chuva engrossou. Vou chegar em casa encharcado. Minha mãe. Se me esbarrar Tia não vai gostar. Assim você se resfria menino. Ainda sou seu menino. Sempre serei. Mas não sou mais um menino. Eu sei. Ontem fiz trinta e dois. Não sou mais um garoto. Não sou. Não sou. Agora sou um homem. Um homem. Grito. Um cachorro late. Bato no peito. Abro o portão. A porta. Acendo a luz. Vou pro quarto. Dispo a roupa molhada. Jogo tudo no chão. Me deito na cama. Nuzinho. É bom. Muito bom. Me cubro dos pés à cabeça. Criança no ventre. Menino. Homem. Tia está roncando. Dá pra ouvir. Mas amanhã ela sabe a hora que cheguei. Ela vai saber. Como eu não sei. Ela sabe de tudo. De tudo mesmo. Menos de uma coisa. Do que eu fiz e nunca contei pra ela. Pra ninguém. Nem vou contar. Pra ela não. É melhor que ela não saiba. Quantos anos passados? Muitos. Quinze. Talvez Vinte. Não sei. Não sei. Não quero saber. Não preciso. Não. Eu não queria matar. Ele bem que merecia morrer. Mas eu não queria matar. Só queria fazer ele sofrer um pouco. Sentir a dor. Ele bem que merecia. Me fazia de capacho. A televisão era só dele. O cuspe pelo chão. Minha mão. Ah. Isso não. Isso ele não podia. Lavei minha mão durante um mês. Lavava e lavava. A toda hora. Principalmente antes de comer. E foi lavando que tive a ideia. Uma noite entro na despensa. Entro. Sorrateiramente. Pego o pacote. Suo. Minhas mãos tremem. Tia que comprou o chumbinho. Sim. O rato era uma vez. Coitado. Tiro um tanto razoável de bolinhas. Enrolo numa folha de caderno. Saio da despensa. Depressa. Me tranco no quarto. Trituro as bolinhas com um estilete. Eu quero. Ele merece. Tenho medo. Ora. Um rato. Isso que ele é. Não posso desistir. Voltar atrás. Miau. Sou gatinho mau. Agora é esperar. Um dia passou. Uma semana passou. Um mês se passou. O embrulhinho sempre no meu bolso. Demorou. Mas uma noite pus na sopa dele. Foi rápido. Inesperado. Tia o chamou no banheiro. Acho que uma rã. Ou víbora. Sei lá. Eu aproveitei. Ele voltou. Recomeçou a comer. Parecia um porco. Ele era um porco. Fiquei esperando. Esperando. Horas. Séculos. Minutos. Esperando. Nervoso. Ansioso. Morre desgraçado. Morre! E então começou. Tudo aconteceu. Eu tive medo. Não queria olhar. Mas não conseguia tirar os olhos. Tia gritava. Joaquim! Joaquim! Ele espumava. Os vizinhos acudiram. Não houve jeito. Logo ele estava teso. Os olhos esbugalhados. Mortinho. Pra todos foi coração. Ao enterro não fui. Pedi pra não ir. Tia me abraçou. Lágrimas rolaram. As dela. Claro que eu ria por dentro. Gargalhava mesmo. O meu suplício tinha acabado. Yes. Era hora de comemorar. Ai. Ledo engano. Durante meses não consegui dormir. Era só fechar os olhos e começava. Aqueles olhos horríveis. Aquela espuma me cobrindo. Me melando feito o cuspe na mão. Acordava em pânico. Os pés gelados. O coração saindo pela boca. Sofri um bocado. Via televisão pra não dormir. Meus olhos lacrimejavam de sono. Tia ralhava. Vai dormir menino. Nessa hora televisão só tem o que não presta. Desliga. Amanhã você tem aula. Eu desligava. Ia pra cama. Pra forca. Pra guilhotina. À força. Meu Deus. Deus. Quero dormir e não sonhar. Não sonhar. Não sonhar. Me ajude. Me perdoe. Eu não queria. Juro que não queria. Meu Deus. Acredite. Acredite em mim. Acredite neste pecador. Me dê a paz. Um sono tranquilo. Por favor. Eu rezo dez ave-marias. Cinquenta. Cem. Cem pai-nossos. Meu Senhor. Eu sei que És bom. Que perdoas setenta vezes sete. Imploro Seu perdão. Quero dormir. Não quero sonhar. É tudo que quero. Tudo. Por favor. Por favor Senhor. Rezava assim mesmo. Desesperado. Noite após noite. Então finalmente consegui. Dormi a noite inteirinha. Estou feliz assim. Sem olhos pra me olhar. Sem espuma. Sem cuspe pra me sujar. Vou dormir. Já é tão tarde. Tia parou de roncar. Amanhã quero beijá-la. Na testa. Nas bochechas. Até nos cabelos. Na boca não. Ela não deixa. Minha velhinha. Temo que ela morra dormindo. Não! Deus há  de protegê-la. Ele vai. Sei que vai. Assim como me protegeu. Assim como me protege. Assim como me protegerá. Boa noite. Tenho sono. Boa noite. Tenho sono. Boa noite. Boa noite. Ontem foi minha data querida. Amanhã eu começo as ave-marias. Os pai-nossos. Cem. Sem sonhos. Boa noite.

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