domingo, 23 de outubro de 2011

GUARDA-CHUVA III


Aqui em casa, tá sendo muito difícil aceitar a morte de Leo. Pra nós, ele era como um membro da família. Anteontem mesmo, domingo, ele teve aqui em casa, estudando Matemática comigo. Saiu daqui por volta das 8:20. Chovia forte, e minha mãe ainda insistiu pra ele dormir com a gente, mas ele disse que não podia. “O Rico tá me esperando, sabe como é...”
Rico é o gato dele. É uma gracinha, apesar de ter uma mania pra lá de esquisita. Morre de medo de guarda-chuva preto aberto. É ver um e logo dá no pé. Uma vez eu falei pro Leo que talvez o amiguinho dele tivesse medo de morcegos e achasse que guarda-chuva fosse um morcegão. Não sei de onde tirei essa idéia, mas ela tava completamente equivocada. O Leo me contou que Rico até brincava com os morcegos no quintal, de tardinha. Eu mesma pude ver isso, certa vez. Sim, sim – às vezes eu também ia à casa de Leo pra estudar, ver vídeo, conversar. Os vizinhos dele pensavam que a gente fosse namorados. Mas não, éramos apenas amigos. Grandes amigos, apesar de nos conhecermos há bem pouco tempo – havíamos nos conhecido na faculdade.
O Leo era uma pessoa incrível. Contávamos tudo um pro outro. Ou quase tudo... Eu desconfiava que ele fosse gay, mas nunca tive coragem de perguntar isso a ele. Teve uma vez, uma única vez, que ele me perguntou se eu tinha coragem de ficar com mulher e eu disse que não. E revidei a pergunta: “E você, Leo, teria coragem de ficar com um homem?” Ele sorriu um tanto sem graça e disse: “Não.” Eu até brinquei: “Não ficaria... ou não sabe se ficaria?” Ele me deu um tapinha nas costas. “Claro que não, Vera!”, disse ele. E completou: “Mas nada contra, viu, amiga?” Sorrimos juntos, e mudamos de assunto. E nunca mais voltamos àquela conversa...
Domingo à noite, quando Leo estava de saída, ele me olhou de um jeito estranho, que não consigo explicar. Não sei por que tive essa impressão. Talvez tenha sido um presságio, sei lá... Acho que Leo notou que eu havia percebido alguma coisa, pois tratou logo de abrir o guarda-chuva que eu lhe emprestara, disse “bye” e mergulhou de vez no aguaceiro pra pegar a condução. Esperei que ele me ligasse quando chegasse em casa, mas o safado não ligou. Decerto tava ocupado demais colocando leitinho e biscoitinho pro Riquinho dele...
E agora meu amigo está morto! É duro acreditar que Leo se matou, logo ele que, apesar das dores, das perdas na vida, tinha um dos sorrisos mais luminosos que já conheci. Mas as coisas são assim mesmo, não é? Ninguém sabe o que de fato se passa na cabeça das outras pessoas, mesmo aquelas mais próximas de você...
Eu soube do acontecido só agora de manhã, depois que liguei pruma vizinha perguntando se ela sabia do Leo, pois desde a noite anterior que tentava ligar pra ele pra saber por que ele perdera a prova de Matemática, e o telefone só dava ocupado. A vizinha disse: “Vera, minha filha, aconteceu uma tragédia! O Leo se enforcou. De manhã cedo eu fui lá deixar um pedaço de bolo pra ele, chamei, chamei e nada. Vi que a porta tava só encostada, empurrei e foi aí que avistei o Leo pendurado na corda. Foi horrível, minha filha, foi horrível!”, terminou a vizinha resvalando no choro. Eu também comecei a chorar, e quando consegui me controlar, perguntei se a tia do Leo (sua única família), que morava lá na Zona Sul e raramente aparecia pra visitar ele, já tava sabendo. “Eu liguei e ela já tá vindo pra cá”, respondeu dona Aparecida. Depois ainda liguei mais duas ou três vezes pra ela. A velhinha, como eu, tá muito abalada. Pra ela, o Leo era um filho, “o filho que eu não tive!”, como ela própria dizia, coitada...

...

É quase meio-dia e eu tô saindo de casa com meus pais. A gente tá indo pro velório.
Tô muito confusa, juro que não sei o que pensar de tudo isso!
Tenho um entalo na garganta, e pergunto pro meu Pai se dá pra dirigir mais rápido. Ele me devolve um sorriso compreensivo e acelera, ao mesmo tempo em que Mamãe me abraça, amparando minhas lágrimas que recomeçam a cair...

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