segunda-feira, 18 de julho de 2011

BONECA DE PANO

          
          A boneca era da minha irmã e, nossa!, como eu a temia...
          “Você tinha medo da tua irmã?”
“Não, da boneca!”
“Por quê?”
“Ela era de pano...”
“Só por isso?!”
“Ela tinha uns olhos grandes, enormes... Você já reparou alguma vez nos olhos das bonecas de pano?”
“Nunca reparo nessas coisas, Leo, você sabe disso!”
“Pois repare, repare...”
“O que é que tem demais?”
“Todas têm olhos esbugalhados, como se estivessem vendo assombração... É terrível, cara!”
“E isso te assusta?”
“Assusta...”
“Quanto?”
“Muito!”
“Leo, você é esquisito, hem?!”

...

Entrei no quarto e lá estava ela – a boneca – sobre a cama. Esparramada. Pernas e braços abertos, moles. A cabeça pendida para o lado. E os olhos querendo saltar das órbitas e engolir tudo...
Recuei, apavorado. E esbarrei em minha irmã, que vinha entrando...
“O que você tá fazendo no meu quarto, Leo, posso saber?”
Eu fiquei mudo. Um bolo tapava minha garganta.
“Leo, você tá pálido!” Vou chamar a mamãe!”

...

Minha mãe chegou e eu continuava imóvel, mas o coração acelerado, os olhos mais arregalados que os daquela maldita boneca... Que estava ali, bem atrás de mim!
“Leo, fale comigo!”
“Hã...?”
“O que você tem, meu filho?”
“Nada... Preciso sair daqui, mãe. Por favor...”

...

Fui então levado para a sala. O transe havia passado.
Minha mãe não me fez mais perguntas. Me preparou um chazinho e se mandou para o encontro mensal das senhoras do bairro; já estava um pouco atrasada...
Mas minha irmã ficou insistindo:
“O que você queria no meu quarto, Leo?”
“Fui pegar aquele dvd que a vovó te deu...”
Ela ironizou:
“Você não acha que tá grandinho demais pra ver aquele dvd, não, hem?”
Me deu vontade de responder:
“E você, não tá grandinha demais pra ficar brincando com... boneca de pano?”
Mas fiquei calado: eu tinha 15 anos, e Duda... 7, apenas!

...

Mais tarde, consegui perguntar a ela:
“Duda, quem te deu aquela... boneca?”
“Qual?”
A de pano...”
“Ah, ganhei na escola. A professora sorteou. Não é linda?”
Linda?!?
Eu ia falar que era horrorosa, isso sim!, mas meu pai vinha chegando e eu me concentrei na tevê...

...

“Tá, Leo, mas agora você tem 36 anos! Não vai me dizer que boneca de pano ainda te apavora, né??”
“Apavora... Sem brincadeira, eu prefereria ficar uma noite inteira num cemitério abandonado a permanecer 30 segundos na mais simples lojinha de brinquedos!”
“Cara, isso realmente é hilário!”
“Se eu soubesse que você ia fazer troça, não teria vindo aqui te contar nada, Guilherme!”
“Não tô troçando de você, Leo.”
“Você por acaso não tem medo de nada, cara?”
“Tenho, sim, Leo. Da violência, por exemplo. Satisfeito?”

...

Minha irmã, felizmente, não tinha o hábito de levar seus brinquedos para fora do quarto. Como lá eu não voltaria a pôr os pés, aquela foi a primeira e a última vez que deparei com a boneca...

...

É, nunca mais vi a coisa...
E olha que Duda a conservou durante muitos anos!
Até a metade da adolescência...

...

“Como você sabe disso, Leo?”
“Minha mãe. Um dia, eu a ouvi perguntar à Duda o que ela fizera com a Maria...”
Maria?
“Sim – Maria, a boneca. Era este o nome dela...”
“E o que tua irmã respondeu?”
“Disse que tinha jogado no lixo... Fiquei tão aliviado, cara!

...

O Gui achou estranho eu nunca ter contado a história da boneca para meus pais, minha irmã, minha avó, para ninguém. Eu não acho estranho coisa nenhuma! Com certeza iam achar que estava ficando maluco...

...

Por isso guardei meu segredo tanto tempo...
E estava disposto a levá-lo para o túmulo – se minha filhota, dia desses, não me faz aquele estranho pedido...

...

“Paizinho, me compra uma boneca nova?”
“Compro, amorzinho.”
“Mas eu quero uma boneca de pano, viu?
“De pano...?!”

...

“E agora, cara, o que eu devo fazer?!?”
“Parar de bestagem e comprar a boneca pra menina.”
“Eu não posso!”
“Pode, sim. Eu te ajudo a escolher, tá bem?”

...

O Gui é um amigão. Fomos ao centro na mesma hora e ele comprou a boneca. Eu a olhei o menos possível, mas me pareceu que aquela ali não tinha os olhos tão grandes assim...

...

Antes de ir para casa – o Gui já voltara para o seu apartamento –, passei num barzinho e tomei duas cervejas.
Não consegui, nem por um segundo, despregar os olhos do embrulho aos meus pés. Ela estava ali dentro, toda encolhida. Presa, impotente. Não poderia me fazer mal algum...
Bebi o último gole e sorri enquanto escorraçava uma moscona que acabara de sentar toda pomposa na boquinha da garrafa!

...

Minha pequena adorou o presente. Abraçou a boneca, me abraçou também e correu para o quarto.
O contato tufado do braço da boneca no meu me fez gelar um pouco...
Tive vontade de vomitar!

...

Dias depois, minha esposa me contou que sonhara comigo se casando com outra...
“Outra mulher? Com quem, meu bem?”
“Adivinhe!”
“Não faço a mínima ideia; não mesmo!”
“Com a boneca, Leo. A que você deu pra Samantha!”
Sob olhar espantado de Rachel, levantei do sofá (eu estava vendo o noticiário) e corri para o quarto da nossa filha.
Abri a porta de uma vez, disposto a estraçalhar boneca!...

...

Mas Samantha estava com ela no colo...
Quando me viu entrar, minha filhinha me disse:
“Oi, papai!”
E, me mostrando a boneca, completou:
“Preciso de um nome pra ela. Que nome que eu dou?”
Não pensei duas vezes...
“Maria!”, respondi.
“É um ótimo nome, querido!”

...

Juro que, por uma fração de segundo, cheguei a pensar que tinha sido a boneca que havia falado!...

...

Mas, não: era apenas minha esposa que enfiara a cabeça porta adentro – e nos convidava para o jantar.



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