sábado, 28 de maio de 2011

CEM ANOS DE SERVIDÃO


Sentou-se à máquina, no silêncio da madrugada, disposto a dar um basta naquele conto engasgado...

Cinco minutos depois, foi socorrido pela filha caçula, que levantara atordoada: “Papai, mas que ideia a sua!”

O velho todo tremia, o dedo espetado na agulha... Confundira a máquina de escrever com a máquina de costura!

quarta-feira, 25 de maio de 2011

À PROCURA DA FLOR

Estão sentados lado a lado no ônibus. Não se conhecem...
De repente, ele se vira para ela e diz:
– Você é a flor mais linda que já vi!
– Obrigada – ela responde, com um sorriso encabulado.
Daí a cinco minutos, ele se vira novamente:
– Casaria comigo?
Dessa vez a moça não diz nada, muito menos sorri; num gesto brusco, se levanta da cadeira e vai se sentar duas ou três poltronas atrás.
Outros cinco minutos, e o rapaz não resiste a se voltar para olhá-la.
A moça, alheia a ele (e talvez ao resto do mundo!), olha fixamente pela janela...
Então começa o alvoroço.
Um magricela lá nos fundos anuncia o assalto, e promete atirar em quem não colaborar.
Os passageiros, feito cordeirinhos, vão entregando seus pertences.
A moça começa a chorar...
O ladrão põe a arma na cabeça dela.
– Passa a bolsa, vai!
O ladrão rouba mais algumas pessoas à frente, salta do ônibus e se escafede na avenida movimentada...
A moça, com os olhos ainda marejando, vai se sentar de novo ao lado do rapaz que a achara bonita.
– Eu fiquei preocupado com você – ele diz.
E fica totalmente perplexo quando ela, enxugando as lágrimas, se aninha como um beija-flor em seus braços...

MEU QUASE ASSASSINATO

Uma noite, voltando a pé para casa, fui perseguido por um carro suspeito ao entrar na pequena rua onde moro com minha tia. Eu juro: escapei por triz de ser atropelado pelo jaguar lindão...
Eu sabia quem ia dirigindo, e sabia também que aquele cara não descansaria naquela noite enquanto não matasse alguém... Era a forma que ele encontrara de relaxar depois de um dia terrível na companhia onde era um dos figurões.
Quando o carro dobrou na esquina, eu não me contive e gritei:
 – Vai te foder, ô caralho!
Sorrindo, entrei em casa e passei pelo quarto da minha tia para ver se ela ainda estava acordada; queria contar para ela do apuro pelo qual eu acabara de passar...
 A velha dormia profundamente, parecia morta.
Fui à cozinha beber água e depois fui para o meu quarto. Me despi e deitei só de cueca.
Pensei no motorista bandido. Ele devia estar muito puto por não ter conseguido me pegar...
Então olhei para a minha estante. Poucos livros, todos lidos tantas vezes!
Me levantei e peguei um do Rubem Fonseca, meu autor preferido. Abri no conto “Passeio Noturno” e, de volta à cama, reli o conto com a mesma empolgação de quando o li pela primeira vez...
Meu quase assassino morava naquele conto...
Sorri feliz. E fechei o livro.

ELE & ELA


Acordou pensando na ex-mulher. Um pensamento insistente, que o acompanhou o dia inteiro...
À noite, depois trabalho, resolveu ligar para ela:
“Quem é?”, atendeu uma voz masculina.
Desligou o telefone. Podia ter discado errado o número...
Ligou de novo. E a mesma voz atendeu...
“Quero falar com a Dulce...”
“Quem quer de falar com ela?”
Não se intimidou:
“É o ex-marido dela...”
Silêncio brusco.
“Alô?”
“Vou passar pra ela.”
“Edgar...?”
“Oi...”
Novo silêncio.
“Desculpe eu estar te ligando assim, Dulce...”
Criou coragem:
“Queria te convidar pra gente sair pra jantar...”
“Hoje?”
“Hoje, amanhã... Você que sabe!”
“Hoje, então.”
Surpreso com a imediata aceitação do convite – afinal, fora ele quem havia proposto a separação meses atrás (sem ressentimentos!) –, Edgar perguntou aonde ela queria ir. No lugar de costume?
Dulce sorriu:
“Que tal no seu apartamento? Pode ser?”
Ele também sorriu:
“Acho que aqui o estoque de comida está meio em baixa...”
“A gente dá um jeito. Chego aí em duas horas! Beijos.”
Edgar abraçou o telefone, feliz da vida. Finalmente ia rever a mulher, depois de tanto tempo afastados... Como estaria ela? Não importava. Nem o sujeito que atendera o telefone importava. Só Dulce importava, nada mais!
  Igualmente feliz da vida, Dulce abraçou o amante. Há muito esperava aquela ligação...  Quem Edgar pensava que era, para abandoná-la feito um trapo, uma coisa à-toa – e depois voltar assim, na maior cara-de-pau?
“Ponha a sua melhor roupa, Carlão! Você vem comigo. Sua arma tem bala?”



OS CARNÍVOROS

Naquela noite, João apareceu com carne para o jantar.
Maria assou a carne, serviu o arroz com feijão e eles comeram em silêncio.
Dali em diante, com certa regularidade, João passou a trazer aquela carne que eles deglutiam sem medo ou prazer.
Uma vez, dentro do pacote, havia dois pés e uma mão – com unha e tudo.
Maria olhou aquilo e perguntou para o marido:
“É bom?”
Mas João já entrara no banho...
Enquanto aprontava o quitute, Maria derramou uma lágrima na frigideira – ou será que foi um pingo de suor?
Pois bem, estavam comendo quando bateram à porta.
Era o primo lá do outro lado da cidade, que estava passando por ali a negócios e resolvera fazer uma visitinha.
Instado a jantar, ele acabou aceitando...
No prato, sobre o macarrão e a salada, Maria colocou dois dedos: o polegar da mão trazida pelo marido e o dedo mínimo do seu próprio pezinho.
O primo comeu tudo, lambeu os beiços e falou:
“Um espetáculo, prima!”
Maria agradeceu sorrindo – sempre tivera uma quedinha por aquele parente do marido...
Daí a dez minutos, o primo se despediu do casal e foi embora.
João acendeu um cigarro e plantou-se diante da TV.
Maria também.
Assistiram a uma reportagem sobre a vida selvagem na África: elefantes, hienas, leões copulando...
Mais tarde, na cama – depois de um sexo minguado –, Maria esboçou um sorrisinho:
“João, sabe do que estou lembrando?”
“Do quê?”
“Do cheiro das flores do meu buquê de casamento...”
“O quê?”, espantou-se o marido.
Maria suspirou sonhadora, e eles dormiram logo em seguida.
João, então, sonhou com os peitos da nova vizinha.
Maria, por sua vez, teve uma noite sem sonhos.
Mas de manhã acordou com uma sede danada – e passou o resto do dia pensando no braço fortão daquele primo lá do outro lado da cidade...
Às seis, como de costume, João chegou do serviço.
Vinha taciturno, pacote debaixo do braço...
Dentro do pacote, apenas frugalidades: leite, linguiça e farinha de fubá.