sexta-feira, 15 de abril de 2011

FATIA DE CHUVA


Chove sobre a cidade. Desde a madrugada que chove. Uma chuva fininha, dessas que parecem que nunca vão passar. E que transformam a alegria da gente numa tristeza escancarada, que dói no corpo todo feito ressaca, ou quebranto, ou o que mais que for...
Para complicar as coisas, é domingo. E estou sozinho em casa... Tia Piedade viajou às pressas para o interior. Foi visitar uma prima que está muito mal. Partiu ontem ao anoitecer. Antes de ir, Tia comprou um bolo para mim. De chocolate, o meu preferido... Está lá na geladeira. Intacto.
É quase meio-dia. Ligo a TV, esperançoso de que algum programa de auditório me anime. Ou talvez algum filme bobo. E nada! Mas deixo a TV ligada. Preciso ouvir a voz de alguém...
Caminho até a janela e espio pela vidraça. Poucos veículos transitando. Raríssimas pessoas na rua. A garoa espantou todo mundo – os de açúcar, os de cimento, os de madeira, os de papelão; também os de sal...
 Do nada, aparece uma mulher com uma criança na calçada em frente. Vão de mãos dadas. A mulher caminha rápido sob o guarda-chuva preto enorme, e a criança – um menino de mais ou menos sete anos e gorro caindo nos olhos – se esforça para acompanhá-la.
Não sei como!, mas o menino me vê...
Sinto vontade de abrir a janela e gritar para a mulher – cujo rosto não consigo ver, por causa do guarda-chuva! – que ela está indo depressa demais; que assim a pobre criança vai ficar cansada e de noite sua perninha vai doer. Chego mesmo a abrir a janela nesse intuito, mas os dois já dobraram a esquina. Ainda que eu grite bem alto, com toda a força da minha alma, com certeza ninguém vai me ouvir...
Torno a fechar a janela. Volto para diante da TV. O apresentador do programa de auditório agora conversa com um artista de circo que, de repente, começa a dar piruetas no ar. E a assistência aplaude, e o rapazinho sorri agradecido, e discretamente deixa o palco. O apresentador não perde tempo: logo chama uma garota seminua com uma cobra amarela enrolada no pescoço.
Desligo a TV e me deito no sofá... A moça do programa era bonita e sexy, mas é que eu tenho cisma de cobra. Uma vez, por um triz não fui picado por uma jararaca. Eu morava lá no interior para onde Tia viajou, e tinha a mesma idade do menininho que acabou de passar com sua mãe lá na rua. Aonde os dois iriam?, me pergunto. Para casa, ora, para onde mais?... Mas, então, de onde viriam, com todo esse mau tempo?... E se a mulher não fosse mãe do menino? E se fosse uma sequestradora, daí caminhar escondendo o rosto? Ou, quem sabe, uma bruxa má, devoradora de criancinhas indefesas?
Fecho os olhos, afastando os pensamentos. Chego a cochilar um pouco... Levo um baita susto quando o telefone toca. É Tia Piedade, querendo saber se estou bem. Digo que estou. Ela pergunta se já almocei. Digo que já. Ela me dá notícias da prima doente – que, graças a Deus, está melhor! – e em seguida desliga, não sem antes avisar que só retorna na quarta... e me desejar um feliz aniversário.
Pois é... Hoje faço triiiiiinta primaveras!...
Sorrindo, ponho o fone no gancho e vou para a cozinha comer um pedaço do bolo de chocolate. Depois, visto uma capa impermeável, abro a porta da rua, saio, fecho a porta à chave e sigo pela calçada. Vou andar um pouco pela cidade. Sem destino. Sem querer chegar a lugar nenhum. Quem sabe, né?, me aconteça algo extraordinário por aí. E eu volte para casa com o coração moleque, um pouco mais alegre, aquecido...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

GUARDA-CHUVA III









Aqui em casa, está sendo muito difícil aceitar a morte de Leo. Pra nós, ele era como um membro da família. Ontem mesmo, domingo, ele esteve aqui em casa, estudando Matemática comigo. Saiu daqui por volta das 8:20. Chovia forte, e minha mãe ainda insistiu pra ele dormir com a gente, mas ele disse que não podia. Rico estava esperando lhe esperando, sabe como é...
Rico é o gato dele. É uma gracinha, apesar de ter uma mania pra lá de esquisita. Morre de medo de guarda-chuva preto aberto. É ver um e logo dá no pé. Uma vez eu falei pro Leo que talvez o amiguinho dele tivesse medo de morcegos e achasse que guarda-chuva fosse um morcegão. Não sei de onde tirei essa idéia, mas ela estava totalmente equivocada. O Leo me contou que Rico até brincava com os morcegos no quintal, de tardinha. Eu mesma pude ver isso, certa vez. Sim, às vezes eu também ia à casa de Leo pra estudar, fazer trabalhos da faculdade, ver vídeo, conversar. Os vizinhos dele pensavam que a gente fosse namorados. Mas não, éramos apenas amigos. Grandes amigos, apesar de nos conhecermos há pouco mais de três meses.
O Leo era uma pessoa incrível. Sabíamos tudo um do outro. Ou quase tudo... Eu desconfiava que ele fosse gay, mas nunca tive coragem de perguntar isso a ele. Teve uma vez, uma única vez, que ele me perguntou se eu tinha coragem de ficar com mulher e eu disse que não. E revidei a pergunta: “E você, Leo, teria coragem de ficar com um homem?” Ele sorriu um tanto sem graça e disse: “Não.” Eu até brinquei: “Não ficaria... ou não sabe se ficaria?” Ele me deu um tapinha nas costas. “Claro que não, Vera!”, disse ele. E completou: “Mas nada contra, viu, amiga?” Sorrimos juntos, e mudamos de assunto. E nunca mais voltamos àquela conversa...
Ontem à noite, quando Leo estava de saída, ele me olhou de um jeito estranho, que não consigo explicar. Não sei por que tive essa impressão. Talvez tenha sido um presságio, sei lá... Acho que Leo notou que eu havia percebido alguma coisa, pois tratou logo de abrir o guarda-chuva que eu lhe emprestara, disse “bye” e mergulhou de vez no aguaceiro pra pegar a condução. Esperei que ele me ligasse quando chegasse em casa, mas o safado não ligou. Decerto estava ocupado demais colocando leitinho e biscoitinho pro Riquinho delezinho...
E agora meu amigo está morto... É duro acreditar que ele se matou, logo ele, que apesar de tantas dores, tantas perdas na vida, tinha um dos sorrisos mais luminosos que já conheci. Mas as coisas são assim mesmo, não é? Ninguém sabe o que de fato se passa na cabeça das outras pessoas, mesmo aquelas mais próximas de você...
Eu soube do acontecido só agora de manhã, depois que liguei pruma vizinha perguntando se ela sabia do Leo, pois desde a noite anterior que tentava ligar pra ele pra saber por que ele perdera a prova de Matemática, e o telefone só dava ocupado. A vizinha disse: “Vera, minha filha, aconteceu uma tragédia! O Leo se enforcou. De manhã cedo eu fui lá deixar um pedaço de bolo pra ele, chamei, chamei e nada. Vi que a porta estava só encostada, empurrei e foi aí que avistei o Leo pendurado na corda. Foi horrível, minha filha, foi horrível!”, terminou a vizinha resvalando no choro. Eu também comecei a chorar, e quando consegui me controlar, perguntei se a tia do Leo, que morava na Baixada e raramente aparecia para visitá-lo, já estava sabendo. “Eu liguei e ela já está vindo pra cá”, respondeu dona Aparecida. Depois ainda liguei mais duas ou três pra ela. A velhinha, com eu, está muito abalada. Pra ela, o Leo era um filho, “o filho que eu não tive!”, como ela própria dizia...
...
São seis da tarde e estou saindo de casa com meus pais. Estamos indo pro velório. A tia de Leo, a única parenta que ele tinha no mundo, está me aguardando. Me disse por telefone que tem um segredo terrível pra me revelar...
Estou confusa, não sei o que pensar de tudo isso...
Sinto um entalo na garganta, e pergunto a meu Pai se dá pra dirigir mais rápido. Ele me devolve um sorriso compreensivo, ao mesmo tempo em que Mamãe me abraça, amparando minhas lágrimas que já começam a cair...

terça-feira, 5 de abril de 2011

GUARDA-CHUVA II





Chego em casa às 9, debaixo duma bruta chuva. Mal entro, meu gato vem se esfregar nas minhas pernas, mas se afasta discretamente ao perceber que estou todo encharcado. O guarda-chuva que minha amiga me emprestara pouco havia adiantado...
Deixo o guarda-chuva na cozinha e vou pro quarto, me trocar; depois, abro a porta do quintal e jogo a roupa molhada dentro dum balde qualquer, ao lado do tanque. Lavarei pela manhã, antes de ir pro trabalho – se der tempo.
Meu gato reaparece. Ponho leite pra ele na tigelinha e esquento comida pra mim. Janto pensando na difícil prova de Matemática de amanhã. Foi por isso que passei duas horas na casa de Vera, estudando. Ela é craque com os números. E é minha melhor amiga também!
O guarda-chuva está ali mesmo, em pé num canto. Meu gato bebe o seu leitinho muitíssimo próximo a ele. Que está fechado, evidentemente. Se estivesse aberto, meu gato já estaria bem longe. Ele tem verdadeiro pavor de guarda-chuva preto aberto. Eu juro por Deus que não consigo entender de onde vem esse seu medo bobo...
Depois de jantar, vou ver televisão. Rico – é este o nome do meu bichano – pula logo no meu colo e fica ronronando.
A chuva finalmente passou. Vejo um pedaço de um programa sobre a vida selvagem na Amazônia e em seguida vou dormir, não sem antes ir à cozinha e abrir o guarda-chuva pra escorrer a água.
Meu gato havia me seguido e, ao ver o guarda-chuva abrindo, desaparece em fuga desesperada... Uma vez Vera me disse que Rico devia ter medo de morcego e, como guarda-chuva preto se parece com morcego, podia achar que fosse um morcegão.
Nada disso. Rico às vezes até brinca com os morcegos lá no quintal, no fim da tarde. Uma vez até capturou um deles que sem dúvida se afoitara num voo rasante , e o trouxe pra dentro de casa, o danado.
Me deito sorrindo ao lembrar do meu susto diante do episódio, mas de repente, ao me cobrir com o lençol, penso com profunda tristeza no guarda-chuva; não o que está aberto lá na cozinha, simples guarda-chuvinha inofensivo, mas o “outro” – de fato assustador! –, que talvez esteja começando a se abrir dentro de mim...




GUARDA-CHUVA



Meu gato tem um medo pra lá de esquisito. É avistar um guarda-chuva preto fechado e ele nem liga; mas se o guarda-chuva estiver aberto, meu Deus!, o bichano eriça o pelo e sai correndo em fuga desesperada...
Criei meu gato desde novinho e, que eu me lembre, aqui em casa ele não teve nenhuma experiência traumática com guarda-chuvas. Então, como explicar esse medo absurdo?
Contei isso pra minha melhor amiga e ela disse:
“Guarda-chuva preto se parece com morcego, não parece? Vai ver, Leo, o teu gato tem medo de morcegos e acha que guarda-chuva é um morcegão!”
Achei que Vera estivesse me zoando, mas bem que ela poderia ter razão. Um fim de tarde, levei Rico pro quintal. No céu, competindo com as primeiras estrelas, os morcegos esvoaçavam pra lá e pra cá. Alguns voavam tão baixo que, por pouco, um não me acerta a cara...
Soltei Rico bem no meio do quintal. Foi se ver livre e o danado começou a brincar com os morcegos. Ficava entocado e, quando um incauto se aventurava num voo rasante, ele dava um salto espetacular e quase capturava o bicho, que saía doido rumo às alturas.
Sorri e voltei pra dentro de casa. Estava no telefone contando pra minha amiga o que acabara de descobrir, quando o gato entrou na sala carregando um morcego na boca. O meu susto foi tão grande que deixei cair o telefone no sofá...
Vociferei:
“Sai daqui, Rico, leva essa porcaria lá pra fora, já!”
Como se fosse de propósito, o gato soltou o morcego bem na minha frente e, com toda a tranquilidade do mundo, foi na direção da cozinha...
Eu peguei o telefone. Do outro lado, Vera, aflita, perguntava o que estava acontecendo. Eu relatei o ocorrido e damos boas gargalhadas juntos.
Desliguei e corri à cozinha pra pegar a pá de lixo pra recolher o morcego. Rico bebia o leite dele tranquilamente. Brinquei com ele:
“Daqui a pouco vou te mostrar o guarda-chuva pra você pagar o susto que me deu, viu, seu malvadinho?”
Quando voltei à sala, nem sinal do morcego!...
Fui ver atrás do sofá, e mal o puxei, o diacho saiu voando lá de trás e passou raspando na minha orelha, sumindo porta afora...
“Está decidido, pronto!”, pensei. “O Rico vai ter o seu guarda-chuva hoje!”
E, com o coração ainda acelerado, tratei de pôr em prática minha pequena vingança...

            

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A CASA SOMBRIA











Órfãos de mãe e pai.
Andrei era professor de Geografia numa escola da Prefeitura.
Tatiana trabalhava como acompanhante de uma velha muito rica e ganhava bem mais do que o irmão. Às vezes ela brincava:
“Andrei, quanto você quer por mês pra largar essa escola idiota e cozinhar, lavar e passar só pra mim?”
Os dois sorriam. Ele dizia:
“Dinheiro não é tudo, sua bobinha. Existem coisas mais importantes, não é?...”
...

Uma noite, eles estavam vendo um filme de terror, quando Tatiana perguntou de repente:
“E o seu livro, Andrei, em que pé está?”
“Está indo de vento em popa!”
“Quando vai me deixar ler um pouquinho? Estou morrendo de curiosidade, sabia?”
Ele pediu silêncio. Queria se concentrar no filme.
            ... 
A mãe morrera seis meses atrás, assassinada por Andrei; o pai, há uma semana. A responsável fora Tatiana...
            ...

Quando o filme acabou, Andrei e Tatiana foram para a cama e fizeram sexo, sexo, sexo. Fazia um frio de rachar, e eles dormiram agarradinhos...
            ...

“Professor, é verdade que os antigos pensavam que o mundo fosse quadrado?”
“É verdade, sim. Mas eles estavam redondamente enganados!”
‘’Kkkkkkkkkkkk...’’
...

Uma noite, após o jantar, Tatiana teve um ligeiro mal-estar.
Foi amparada pelo irmão. 
“Andrei, acho que estou grávida!”
Sem olhar para ela, ele disse:
“Bobagem. Deve ser só a comida que lhe fez mal...”
...

Dias depois, Tatiana fez aniversário. 26 anos.
Andrei também – eram gêmeos.
Eles beberam uísque e foram para a cama completamente bêbados.
...

Os retratos do pai e da mãe, pendurados na parede, eram desafiados constantemente pelos beijos, abraços e carícias dos pombinhos.
Papai e mamãe nada diziam. Se dissessem, já sabiam: morreriam outra vez!
...

“Para, Andrei, a Maria pode entrar e ver a gente!”
...

“Dona Tatiana, é pra senhora.”
Era Andrei avisando que chegaria mais tarde. Tinha reunião na escola.
Chateada porque jantaria sozinha, Tatiana desejou enfiar uma faca de cozinha na empregada. Mas a chamou e disse:
“Agora você pode ir, Maria. Boa noite.”
...

Horas mais tarde, saciado de comida e de sexo, Andrei dormiu e sonhou que autografava livros para uma multidão enlouquecida.
Atrás de Andrei, sua mãe beijava o marido na boca e bulinava os peitos de Tatiana.
O velho, por sua vez, acariciava as costas de Andrei...
O rapaz acordou de pau duro.