sábado, 30 de outubro de 2010

CASUALIDADE

Ao entrar naquele bar e pedir uma cerveja e uma dose de cachaça, Danilo transpirava estresse por todos os lados. Acabara de discutir terrivelmente com a mulher. Motivo da briga: Pedrinho – seu enteado – um pirralho de treze anos que volta e meia vivia a infernizar a sua vida. Por causa dele, uma porção de vezes ameaçara largar a viúva e se mandar no oco do mundo; mas desistia ao considerar que ali tinha todas as regalias possíveis – incluindo grana fácil para torrar em futilidades e sexo quente e gostoso para homem nenhum botar defeito. Verdade verdadeira: Jacira era um furacão na cama! Danilo a havia conhecido numa casa de forró. Beberam e dançaram a noite toda – e na semana seguinte ele se mudou para a casa dela. (Emigrante nordestino, até então vivera com a irmã e ajudava o cunhado numa lojinha de artigos esportivos). Pois bem: mandou tudo para o beleléu e se socou de mala e cuia na casa da coroa boazuda – e isso já fazia quase um ano! No momento trabalhava meio expediente numa padaria, mas andava pensando seriamente em largar aquele serviço mixuruca de mão. A pensão do falecido, mais o dinheiro das duas casas que Jacira mantinha alugadas, era suficiente para suprir as suas necessidades básicas de garotão da hora... Ele já tinha vinte e  nove anos nos couros, mas era assim mesmo que Danilo se auto-proclamava: um garotão da hora!
– Você é um cara de sorte, Danilão! – diziam os amigos.
Ele rebatia:
– Vocês não sabem a peste que é o filho dela... E a velha é ciumenta que nem o demônio!
Os amigos davam-lhe tapinhas nas costas:
– Isso é o de menos, cara! Isso é o de menos...
Agora Danilo achava-se ali, encostado no balcão de um barzinho à-toa... Quando pediu a cerveja e a dose de cachaça, o dono do estabelecimento o mediu de cima a baixo. Danilo percebeu, mas ficou quieto. Não queria discutir mais com ninguém naquela noite. Uma briga só já bastava.
Virou a pinga de um gole. O álcool desceu rasgando-lhe a garganta, quis tossir. Tossiu abafado, disfarçando: o bar regurgitava – e ele não queria que os outros pensassem que ele era um cachaceiro principiante.
De fato, Danilo nunca fora um bom bebedor de pinga. A danada sempre descia lacerando tudo – sem contar que ele se embriagava fácil, fácil. Cerveja, não. Podia beber várias, o efeito era lento e raramente o deixava de porre. A pinga, ao contrário... E não era preciso muita, não: bastavam cinco ou seis doses para fazê-lo rastejar pelo chão. Uma vez, chegara a tirar toda a roupa num churrasco na casa de um amigo. Por sorte, as mulheres tinham acabado de ir à cozinha pegar um pouco de carne, e as crianças jogavam videogame na sala. Ninguém percebeu nada. Os amigos o vestiram às pressas, apesar da resistência que ele oferecia. Quando Pedro, dias depois, lhe contou o sucedido, Danilo ficou muito impressionado e jurou nunca mais botar cachaça na boca.
Isso fazia apenas dois meses. Agora ele enchia a cara encostado no balcão. Já bebera uma dose e três cervejas. Sentia-se bem – e quis pedir outra dose. “É a última...” – pensou sorrindo. “Dessa vez não vou deixar que a safada me noucateie, não!”
Secou a cerveja e pediu a dose e outra cerveja. O dono do bar, enquanto servia, escolheu bem as palavras para falar:
– Moço, você não tem medo de se embriagar, não?
Danilo esteve a pique de soltar uma grosseria – talvez mandar o sujeito tomar naquele lugar – mas disse apenas:
– Tô acostumado.
E ficou sério. O dono do bar, encabulado, foi atender uma cliente que o chamava insistentemente. Ela falou qualquer coisa no ouvido do homem e ele, de cara amarrada, fez um gesto indicando Danilo com a cabeça. Danilo percebeu o gesto – bebeu a dose de uma lapada e ficou encarando a mulher. Ela parecia ter uns vinte anos, era loura e um tanto gordinha; mas em compensação tinha uma boca tão carnuda, tão vermelha e tão brilhante que – por alguns segundos – Danilo fechou os olhos e se imaginou sorvendo aquela boca deliciosa como se devorasse um pedaçinho da maçã que Adão comeu no paraíso...
Quando abriu os olhos, levou um baita susto: diante dele, a boca exibia o mais lindo dos sorrisos...
– Oi... – ciciou a moça.
Danilo também sorriu:
– Oi...
Ela, então, puxou um tamborete para perto dele e sentou-se; depois, olhando para as próprias unhas (longas e vermelhas como sua boca), incorporou a menina tímida e perguntou:
– Você... me paga uma bebida?
Danilo, delicadamente, segurou-lhe pelo queixo e a fez olhar para si:
– Pago, sim, meu anjo... Mas vai ter que me contar o que você perguntou ao carinha ali sobre mim!
Ela desvencilhou-se dele:
– Eu te conto, sim... Mas primeiro a bebida!
– Tá bem. O que você quer beber?
– De início, uma pinga! – exclamou ela após breve hesitação. – Depois tomo uma cervejinha com você...
Achando aquilo inusitado – e divertido –, Danilo mandou botar uma pinga “pra moça”. E, empolgado, completou:
– E vê outra pra mim também!
Dessa vez o dono do bar serviu a bebida sem olhar nem falar nada.
– Vamos brindar! – propôs a moça.
– Brindar o quê? – inquiriu Danilo.
– Aos amantes da cachaça! – e ela levantou o copo.
Brindaram ruidosamente. Algumas pessoas próximas olharam para eles. O dono do bar também.
Assim que entornaram a cachaça e Danilo pousou o copo no balcão, a moça falou:
– E aí, ainda quer saber o que perguntei ao cara do bar?
Contente porque, pela primeira vez em sua vida, a bebida não descera rasgando nem lhe dera vontade de tossir, Danilo replicou:
– Deixa pra lá... Melhor me falar o seu nome. O meu é Danilo!
– Meu nome é Anelise, mas gosto que me chamem de Anne, com dois “enes”...
– Prefiro Anelise! – disparou Danilo. – Se você me permite, é claro...
– Tudo bem, Danilo, hoje você pode me chamar do que quiser! Tô feliz à beça: é meu aniversário...
– Opa, meus parabéns! – Danilo tomou-lhe as mãos efusivamente. – Isso merece mais uma cerveja geladinha... Ei!
Obedecendo ao clássico gesto do indicador empinado, o dono do bar trouxe outra cerveja. E, olhando para ele e depois para Anelise, informou:
– É a última. Vou fechar.
– Que horas são? – perguntou Danilo.
Foi Anelise quem respondeu, consultando o seu reloginho de pulseira amarela:
– Quase duas!
– Caramba, o tempo voa, né?! Achava que ainda não fosse meia-noite...
Sorveram a cerveja entre risos e palavrinhas bobas. A moça sugeriu:
– Vamos dar uma volta por aí?
Danilo, constrangido, balbuciou:
– Eu... Eu tô a pé, sabe?...
– Tem nada, não; tô mesmo precisando caminhar um pouco... Vamos!
Danilo puxou a carteira e pagou a conta. Ao devolver o troco, o dono do bar chispou para a moça:
– Vê se não chega só de manhã, viu, dona Elizângela!
Estranhando aquilo, Danilo falou em tom grave:
– Alguém pode me contar o quê que tá havendo aqui?
Anelise o puxou pela mão e eles saíram rápido do bar.
Caminharam um instante em silêncio, até que Danilo estacou; cruzou os braços, encarando a garota:
– Sou todo ouvidos, dona Elizângela!
– Desculpe, Danilo. Meu nome verdadeiro é Elizângela... e aquele lá é meu padrasto – explicou-se Anelise. – Eu odeio ele! Acha que pode mandar em mim...
Danilo não teve jeito senão rir da coincidência: saíra de casa estressado com seu enteado e encontrara o refrigério justamente ao lado de uma... enteada! Que coisa louca; ironia do destino!
– Você tá rindo do quê? – Anelise quis saber.
Danilo então contou da briga com a mulher por causa do sacana do filho dela.
Elizâgela-Anelise o abraçou:
– Não esquenta, não, meu bem... Hoje a gente vai se divertir muito. Vamos lá na praia?
Danilo concordou. Passaram num barzinho, compraram algumas latas de cerveja, entraram numa van e – vinte minutos depois – estavam se beijando e se amassando na areia da praia deserta àquela hora da madrugada...

...

Danilo acordou com o sol nascendo. Demorou um pouco a reconhecer o lugar onde se encontrava.
Sentada ao seu lado, Elizângela (pura como nunca!) olhava o mar com a mesma serenidade daquelas águas sem fim...
– Olha lá! – gritou ela de repente apontando em certa direção.
– O que foi? – perguntou Danilo levantando-se com dificuldade.
– Tem uma mulher vindo furiosa pra cá... Será sua mulher?
– Xiiiii... É ela mesmo! E aquele careca ali do lado, não é seu padrasto, não?
– Pode apostar que sim... E agora, hem?
Sincronizados, os dois se entreolharam, sorriram e – desabando molemente sobre a areia – fingiram-se de mortos.

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