sexta-feira, 23 de abril de 2010

TRIBUTO PROFANO

Tremendo que nem vara verde, Clécio foi correndo contar a Pedro a triste notícia...
“Não pode ser, cara...!”
Infelizmente era verdade – Tok estava morto... Um carro o pegara na ciclovia; alguém tinha visto o assassino fugir sem prestar socorro, o filho da puta!

...


Morto...
Ele vivia dizendo: Nascer foi a melhor coisa que já me aconteceu!
E agora – morto...

...

Um enterro simples, simples demais. A mãe e a irmã choraram o tempo todo; (o céu chuviscou...)
Na condição de melhores amigos de Tok, Pedro e Clécio (por sua vez) jamais conseguiriam disfarçar sua dor... O trio havia sido excelentes companheiros; mulherengos e cachaceiros que só vendo!

...

Pois logo depois do enterro, Clécio e Pedro buscam refúgio num barzinho à-toa.
Cai a noite...
– Parece mentira que ele se foi, não é, Pedro?
Ficaram bebendo e conversando. Davam risadas. Riam das maluquices de Tok, o inesquecível; as horas co-riam...
E agora e agora???

...

A noite esfriou um bocado...
No bar, restam 3 fregueses, apenas: Pedro, Clécio – e uma figura atenta e silenciosa na penumbra dos fundos...
O dono do bar dormita ao som de Acolá É Onde Canta O Sabiá...

...

Num ímpeto, Pedro se levanta e diz:
– Vem, Clécio, vamos fazer uma homenagem pro Tok!
– Que homenagem, Pedro?
O outro explica o que tem em mente.
E o outro arregala os olhos:
– Não sei, não, Pedro... Será que isso é certo?
– Se é certo, eu não sei; mas que o irmãozinho Tok vai gostar, posso garantir!
Nascer foi a melhor coisa...
– Bom, então eu topo. Em nome da nossa amizade...
– Isso mesmo, meu velho: em nome da nossa amizade!
... que já me aconteceu!

...

Saem do barzinho – os capacetes esquecidos debaixo lá da mesa...

(Eu sou Pedro...
Eu sou Clécio...
Eu...???)


...

Numa esquina, 2 garotas espreitavam...
Os rapazes estacionam.
NEGOCIAM.
As moças – a princípio hesitantes – topam por 20 a mais, cada uma.
E o grupo então segue, impávido e retumbante, para o – cemitério!

...

“Clécio hic acho que acordamos as almas hic com o barulho das motos hic!”

...

Com certa dificuldade, os 4 pulam o velho portão de ferro...
Aí localizam a cova de Antoniel Gaspar da Silva, vulgo Tok...
E nada, nada os impedirá de transarem feito loucos ali na terra fresca da sepultura – embora o vento tivesse começado a soprar estranhamente morno e a lua gorda no céu parecesse constrangida diante de quadro tão bizarro!!!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

UM VAMPIRO EM APUROS

na noite fria
de Curitiba

(o Trevisan
escre/vendo...),

a travestida, orra!,
abre as pernas,

Nelsinho
entra...

– e,
segundos depois,

eleZão é mosquinha
se debatendo

desespe-
radamente

na
teia

da aranha
assassina!...

CAFÉ DE MORTE

Cheguei em casa, e chovia muito.
Eram por volta das onze e meia.
Vinha todo encharcado, pois voltara a pé do teatro.
Sem guarda-chuva, sem capa, sem medo da noite escura, sem amor pra recordar.
A peça tinha sido uma porcaria; não valia o preço do ingresso.
Mas tudo bem.
Pelo menos, quando eu entrasse em casa, estariam me esperando minha velha tia e sua cadelinha Rebita.
De fato, mal entrei, Rebita apareceu fazendo festa.
Sorri pra ela, lhe fiz um ligeiro carinho e dobrei pra cozinha.
Minha tia com certeza lá se encontrava, já que um cheiro agradável de café invadia a casa.
Mas nem sinal dela na cozinha.
O fogão dormia silencioso.
E nenhum resquício de café...
Então, de onde vinha aquele cheiro tão forte, tão vivo – tão...?
Chamei a cadelinha.
Em resposta, só o silêncio.
Intrigado, fui pro quarto da minha tia.
Bati uma, duas, tia!, tia! – nada.
Abri a porta.
Entrei no escuro e tateei o interruptor.
Quando a luz acendeu, deparei com minha tia caída ao pé da cama.
Deitada ao lado, focinho no chão, Rebita me olhava furtivamente...
Mas, como...?!
Corri ligeiro pra minha tia, tentei erguê-la pra cama.
Ela era finada, a pobrezinha!
Alvoroçado, a beijei e abracei, disse coisas.
E percebi que era do seu vestido, dos seus cabelos que se desprendia o tal cheiro de café...

...

Esta noite faz um mês que minha tia morreu.
Foi coração, o médico falou.
Tenho trinta e três anos e estou chegando mais uma vez do teatro.
Sem guarda-chuva.
Se amor pra recordar.
Completamente molhado.
(A peça não valia o que paguei!)
Vou preparar uma xícara de café pra me aquecer.
Depois, talvez, eu escreva um poema sobre nada.
E, quem sabe, estrangule Rebita...

EM OUTUBRO TAMBÉM TEM FADA

Aconteceu na época da estiagem – quando as cigarras cantavam enfurecidas; quando dezenas de urubus infestavam o céu reluzente; quando as pessoas, os animais e a natureza haviam ganhado aquela tonalidade esmaecida; e quando a vida outrora suportável se afigurava completamente impossível... Foi justo nessa época de poeira e privações que desabou o pé-dágua. Ao invés de alegres, os habitantes daquela pequena aldeia ficaram estarrecidos com aquilo. Afinal, onde já se vira chuva em outubro – bem no meio do verão! – e que dirá um toró brabo daqueles?!?
“É o fim do mundo!”, os mais velhos foram logo decretando.
“Que nada!”, saltitaram os mais novos. “É apenas um capricho da natureza, só isso!”
Escusado é dizer que os velhinhos nem aí para a garotada, tão convencidos estavam de que o mundo acabaria em breve, muitíssimo em breve; então, não era verdade que a chuva tinha durado exatos 33 minutos?!
Quem garantiu foi seu Adão, o barbeiro.
No que foi confirmado de imediato pelo dono da botica e pelo coveiro.
E a beata Zeferina aproveitou:
“33 minutos! Cristo morreu com 33 anos! É um aviso de que ele está voltando!”
A moçalhada achou melhor não criar caso, uma vez que ali as pessoas eram bastante religiosas e a gente (até demais!) que não se deve duvidar das coisas do céu – não é assim?
Bom, o tempo passou.
O mundo não acabou.
E aquela aldeiazinha distante, ao contrário do que se imaginava, não se transformou...
Os raros viajantes que por ali passavam ouviam a tal história da chuva de outubro com ceticismo. Um deles, olhando em derredor, chegou mesmo a dizer: “E aqui chove, neste deserto?” E, antes de sair, sacudiu o pó das sandálias – sinal de que, na próxima vez, pegaria outro caminho...
Fosse como fosse, ali jamais voltaria a chover em outubro. Nem uma gotinha sequer; nada!
Enquanto isso, mundo afora, os homens iam conquistando Marte e os outros planetas do nosso sistema solar.
E já não se fazia guerra.
E nenhuma pessoa passava fome, sede ou estresse.
E todos eram e seriam para sempre...
... Felizes: como naqueles antiquissimos contos de fada que, neste novo tempo, as criancinhas tratavam com desprezo!

MEU FILHO, MEU PAI

UM DIA, QUANDO EU CRESCER, DEUS ME LIVRE DESER ESCRITOR!
Esta frase foi pronunciada por meu pirralho, certa vez. Ele entrara tão de mansinho em meu escritório que só notei sua presença quando ele falou do meu lado...

“O QUE ACONTECEU, MEU FILHO?”
“POR QUE VOCÊ NÃO QUER SER ESCRITOR?”

Não... Eu não perguntei nada disso...
O que eu disse foi:
– Renato...? Você me assustou, menino!
E como eu estava ocupadíssimo com um relatório da empresa, completei:
– Depois conversamos, está bem?
Ele resmungou qualquer coisa, e – visivelmente chateado – desapareceu das minhas vistas por algumas horas; decerto fora para o quarto jogar videogame.
Mais tarde, na cama (minha esposa dormia profundamente, e eu acabara de ler o prefácio de um desses livrinhos de autoajuda), pensei na frase que Renato havia dito.
O que ele queria dizer com aquilo?
No dia seguinte, durante o jantar, soltei de repente:
Um dia, quando eu crescer, Deus me livre de ser escritor!
A reação do Renato foi instantânea.
Minha esposa, curiosa, foi logo querendo saber de tudo, tu-di-nho!
– Pergunte ao rapazinho aí – falei sorrindo.
Renato então contou. Contou da professora. Do livro chato que ela mandara ler para a prova bimestral.
E ela deixou bem claro que quem não ler pega zero!
Dizendo isso, levantou-se da mesa e saiu da sala. Voltou logo em seguida, livro debaixo do braço; estendeu-me o cujo:
– Veja, pai, veja!
Peguei o livro e o folheei atentamente. Não, não era chato coisa nenhuma. Chata era professora, que não se dera conta de que um livro daquele não era tipo assim “leia e pronto”. Mesmo não sendo muito fã de literatura, eu conhecia livro, sabia que não era de leitura fácil – e meu filho tinha apenas dez anos, ora bolas!
– É chato, não é, pai? – de pé, Renato aguardava uma confirmação...
Sem saber como responder, pedi à minha mulher que me passasse a travessa do arroz. Pus no meu prato, devolvi a travessa e comi uma colherada.
Rosana estranhou:
– Você não vai falar nada, Rui? O menino está esperando!
Renato continuava de pé, me olhando feito uma estátua.
Pigarreei.
E li, bem alto, o título do livro e o nome do autor.
E divaguei:
– Já ouvi falar desse cara... Que tal, Renato, se a gente lesse o livro juntos?
E ele, perplexo:
– Mas como, pai, se você nunca tem tempo?!
– Arranjo um tempinho pra você, eu prometo... Combinado?
– Combinado!
Sim, sim lemos o livro. Noite após noite. A história todinha, do começo ao fim. (É verdade que às vezes – discretamente – eu pulava um pedacinho, resumia uma descrição...) Mas, enfim: tínhamos cruzado, sãos e salvos, a linha de chegada – e era isso o que importava, de verdade!
Depois da última palavra, me voltei para o meu filho e disse:
– E então, o que achou?
A resposta foi um sorriso luminoso e único.
Senti um entalo na garganta, logo dissipado num abraço forte e caloroso.
Meu filho...
Meu pai!
Minha mulher – que assistira a tudo sem piscar – encheu os olhos de lágrimas. Parecia até que estava vendo aquela nova novela, a talzinha das seis...

UM BIQUÍNI SELVAGEM

Cutuca o outro:
– Olha...
– O quê?
– Ali...
– Ah...!
A mulher vem se aproximando. Gorda e desengonçada, o biquíni ameaça rebentar a qualquer momento...
– Ei, gostosona!
É um murmúrio, apenas; mas a mulher ouve:
– Qual é?
– Hã?
– Perguntei qual é.
– Nada não, dona; tava aqui falando com o meu amigo...
– Falando de mim!
– Que é isso, dona. A gente não tava falando da senhora, não...
A mulher fecha ainda mais a cara, faz aquele gesto típico “aqui pra vocês, ó!”, e vai embora dizendo palavrão.
Quando ela chega numa distância razoável, os dois começam a gargalhar.
– Cara, eu pensei que ela ia bater na gente!
– Tu é doido, mano!
E é aquela inflação de riso; rolam na areia, de tanto que riem.
– Ih, olha aí!
Não dá tempo de escapar. A gorda e mais duas amigas caem em cima deles e tome tabefe nos playboyzinhos!
Em volta do grupo, os banhistas gritam:
– Bate mais!
– Separa, separa!
– Acaba com eles!
– Valha-me Deus!
– É isso aí!
Em boa hora, a polícia chega junto e – apesar de enérgica – só a muito custo consegue conter os ânimos...
A situação é devidamente esclarecida e os rapazes – assustadíssimos – dão no pé.
Nunca mais serão vistos naquela parte da praia...
Já a gorda valentona se torna bastante popular por ali. Quando ela passa – sozinha ou com as amigas – todos fazem questão de cumprimentá-la.
Todos mesmo, sem exceção:
– Dona Marta é a rainha da praia!
Se agora alguém, porventura, cogita em fazer pilhéria, pode ter certeza de que isso fica bem trancafiado no pensamento...
– Boa tarde, dona Marta. Que dia lindo, hem?

BONECA DE PANO

A boneca era da minha irmã e, nossa!, como eu a temia...
“A tua irmã?”
“Não, a boneca!”
“Por quê?”
“Ela era de pano...”
“Só por isso?!”
“Ela tinha uns olhos grandes, enormes... Você já reparou alguma vez nos olhos das bonecas de pano?”
“Nunca reparo nessas coisas, Leo, você sabe disso!”
“Pois repare, repare...”
“O que é que tem demais?”
“Todas têm olhos esbugalhados, como se estivessem vendo assombração... É terrível, cara!”
“E isso te assusta?”
“Assusta...”
“Quanto?”
“Muito!”
“Leo, você é esquisito, hem?!”

...

Entrei no quarto e lá estava ela – a boneca – sobre a cama. Esparramada. Pernas e braços abertos, moles. A cabeça pendida para o lado. E os olhos querendo saltar das órbitas e engolir tudo...
Recuei, apavorado. E esbarrei em minha irmã, que vinha entrando...
“O que você tá fazendo no meu quarto, Leo, posso saber?”
Eu fiquei mudo. Um bolo tapava minha garganta.
“Leo, você tá pálido!” Vou chamar a mamãe!”

...

Minha mãe chegou e eu continuava imóvel, mas o coração acelerado, os olhos mais arregalados que os daquela maldita boneca... Que estava ali, bem atrás de mim!
“Leo, fale comigo!”
“Hã...?”
“O que você tem, meu filho?”
“Nada... Preciso sair daqui, mãe. Por favor...”

...

Fui então levado para a sala. O transe havia passado.
Minha mãe não me fez mais perguntas. Me preparou um chazinho e se mandou para o encontro mensal das senhoras do bairro; já estava um pouco atrasada...
Mas minha irmã ficou insistindo:
“O que você queria no meu quarto, Leo?”
“Fui pegar aquele dvd que a vovó te deu...”
Ela ironizou:
“Você não acha que tá grandinho demais pra ver aquele dvd, não, hem?”
Me deu vontade de responder:
“E você, não tá grandinha demais pra ficar brincando com... boneca de pano?”
Mas fiquei calado: eu tinha 15 anos, e Duda... 7, apenas!

...

Mais tarde, consegui perguntar a ela:
“Duda, quem te deu aquela... boneca?”
“Qual?”
A de pano...”
“Ah, ganhei na escola. A professora sorteou. Não é linda?”
Linda?!?
Eu ia falar que era horrorosa, isso sim!, mas meu pai vinha chegando e eu me concentrei na tevê...

...

“Tá, Leo, mas agora você tem 36 anos! Não vai me dizer que boneca de pano ainda te apavora, né??”
“Apavora... Sem brincadeira, eu prefereria ficar uma noite inteira num cemitério abandonado a permanecer 30 segundos na mais simples lojinha de brinquedos!”
“Cara, isso realmente é hilário!”
“Se eu soubesse que você ia fazer troça, não teria vindo aqui te contar nada, Guilherme!”
“Não tô troçando de você, Leo.”
“Você por acaso não tem medo de nada, cara?”
“Tenho, sim, Leo. Da violência, por exemplo. Satisfeito?”

...

Minha irmã, felizmente, não tinha o hábito de levar seus brinquedos para fora do quarto. Como lá eu não voltaria a pôr os pés, aquela foi a primeira e a última vez que deparei com a boneca...

...


É, nunca mais vi a coisa...
E olha que Duda a conservou durante muitos anos!
Até a metade da adolescência...

...

“Como você sabe disso, Leo?”
“Minha mãe. Um dia, eu a ouvi perguntar à Duda o que ela fizera com a Maria...”
Maria?
“Sim – Maria, a boneca. Era este o nome dela...”
“E o que tua irmã respondeu?”
“Disse que tinha jogado no lixo... Fiquei tão aliviado, cara!

...

O Gui achou estranho eu nunca ter contado a história da boneca para meus pais, minha irmã, minha avó, para ninguém. Eu não acho estranho coisa nenhuma! Com certeza iam achar que estava ficando maluco...

...

Por isso guardei meu segredo tanto tempo...
E estava disposto a levá-lo para o túmulo – se minha filhota, dia desses, não me faz aquele estranho pedido...

...

“Paizinho, me compra uma boneca nova?”
“Compro, amorzinho.”
“Mas eu quero uma boneca de pano, viu?
De pano...?!

...

“E agora, cara, o que eu devo fazer?!?”
“Parar de bestagem e comprar a boneca pra menina.”
“Eu não posso!”
“Pode, sim. Eu te ajudo a escolher, tá bem?”

...

O Gui é um amigão. Fomos ao centro na mesma hora e ele comprou a boneca. Eu a olhei o menos possível, mas me pareceu que aquela ali não tinha os olhos tão grandes assim...

...

Antes de ir para casa – o Gui já voltara para o seu apartamento –, passei num barzinho e tomei duas cervejas.
Não consegui, nem por um segundo, despregar os olhos do embrulho aos meus pés. Ela estava ali dentro, toda encolhida. Presa, impotente. Não poderia me fazer mal algum...
Bebi o último gole e sorri enquanto escorraçava uma moscona que acabara de sentar toda pomposa na boquinha da garrafa!

...

Minha pequena adorou o presente. Abraçou a boneca, me abraçou também e correu para o quarto.
O contato tufado do braço da boneca no meu me fez gelar um pouco...
Tive vontade de vomitar!

...

Dias depois, minha esposa me contou que sonhara comigo se casando com outra...
“Outra mulher? Com quem, meu bem?”
“Adivinhe!”
“Não faço a mínima ideia; não mesmo!”
Com a boneca, Leo. A que você deu pra Samantha!
Sob olhar espantado de Rachel, levantei do sofá (eu estava vendo o noticiário) e corri para o quarto da nossa filha.
Abri a porta de uma vez, disposto a estraçalhar boneca!...

...

Mas Samantha estava com ela no colo...
Quando me viu entrar, minha filhinha me disse:
“Oi, papai!”
E, me mostrando a boneca, completou:
“Preciso de um nome pra ela. Que nome que eu dou?”
Não pensei duas vezes...
“Maria!”, respondi.
É um ótimo nome, querido!

...

Juro que, por uma fração de segundo, cheguei a pensar que tinha sido a boneca que havia falado!...

...

Mas, não: era apenas minha esposa que enfiara a cabeça porta adentro – e nos convidava para o jantar.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

O MISTÉRIO DA PORTA

O cartaz, na verdade, é simplesmente uma folha de papel ofício deitada e manuscrita com letras maiúsculas e desenxabidas:

PRECISA-SE DE UM CONTO.
É URGENTE!
PAGA-SE O QUE FOR DE DIREITO...

Surpresa. Aguçamento.
Duas da tarde. O sol tinindo. A rua deserta... Devo ir embora?
Mas estou faminto e cadê tostão... Toco a campainha. Três vezes. O sujeito que atende (terno preto e óculos escuros) e a cara do Tommy Lee Jones; já o bigodinho é da Adriana Calcanhotto – se ela tivesse bigode.
“Vim pelo anúncio...”
“Ah! Pensei que fosse pela Rainha da Inglaterra... Venha comigo!”
Pasmo, já entro num elevador.
O bicho, veloz, não sei se sobe ou se desce.
Aí, de repente, para com um sacolejão!
Susto baita... Vixe!
O estranho não disfarça um risinho de deboche:
“Calma, isso é normal. Me acompanhe!”
Agora uma sala vazia. Um breve corredor. Outra sala, esta toda mobiliada. Outro corredor, este longo e sem qualquer saída lateral.
Ao final do corredor, uma porta – creio que de nuvem...
O homem tira seus óculos escuros; me encara:
“Ente aí. Seja cuidadoso! Eu sou Filho da Arte. Exijo autenticidade. O lado mais verdadeiro de cada um. Boa sorte!”
Ele torna a pôr os óculos, escarra na parede e pega o caminho de volta.
Eu respiro fundo e mergulho no mistério daquela porta... E me vejo numa espécie de galpão – enorme, fechado, iluminadíssimo. Ali, cerca de 90 homens. Nenhum percebe minha chegada?
Um “alegre” se aproxima balangando:
“Olá, meu nome é Peter D. Davis. O seu é...?”
Digo um nome falso, não sei por quê:
“Félix da Silva.”
“Olha, Félix, naquele baú – tá vendo? – tem papel e caneta. E não esqueça: meu nome é Peter... Bye!
Só nesse momento me dou conta de que os homens estão todos escrevendo – uns em pé, outros sentados em girassóis de Van Gogh, outros acocorados; há uns poucos no telhado, pendurados como morcegos...
Pego folha e caneta no baú.
Uma confortável poltrona-do-papai se materializa bem na minha frente!
Ora, tomo assento...
Daí a pouco, adentra um frangote de uns 14, 15 anos. Boné ao contrário e tênis horrorosos. Claro. Sua presença é ignorada.
Vou até ele:
“Ei, naquele baú tem papel e caneta!”
“O quê?”
“Papel e caneta, seu burro! Naquele baú!”
“...”
Volto para o meu canto. Para o me conto.
A caneta veleja. As palavras não se negam. Escrevo com grande excitação!
Penso:
“Sou o contista MÁXIMO do Brasil, talvez até do mundo inteiro!”

... MAS, QUE VOZERIO DESGRAÇADO É ESSE NA MINHA CABEÇA PROCLAMANDO QUE AQUELE DALTON DE CURITIBA É IMBATÍVEL, Ó DEUS???...

terça-feira, 13 de abril de 2010

INSÔNIA

um cão vagabundo
late à vontade
acuando os mistérios
da rua

o travesseiro
é um monstro sem sossego
que aos poucos
me devora

E AGORA, JOÃO???

De manhãzinha, João acorda com uma baita coceira no joelho esquerdo...
Ressabiado, investiga o joelho: nada encontra de suspeito.
- Que diacho será isso, mulher?
Maria, categórica, responde:
- Vá logo no doutor, João; com doença não se brinca! Só não vou mais você porque tem essas roupas aí da d. Clotilde pra lavar.
João acata o conselho da esposa, o seguro morreu de velho, cheiro horrível esse de hospital...
- Coça demais, doutor, o senhor nem imagina quanto!
O médico examina o joelho, examina e examina...
João, mãos e pés gelados, teme que seja caso de operação...
Mas o médico depõe os óculos (finíssimos) sobre a mesa e diz:
- Está tudo ok, seu João.
(Vocês percebem? Quem fica esperando o pior, meio que desaponta quando vem o melhor...)
- Mas, doutor...
- Seu joelho goza de perfeita saúde, seu João!
Deixando o hospital, João procura um orelhão:
- Tonho, avisa aí pro chefe que hoje não vou trabalhar, não: tô doente...
- O que aconteceu, João?
João desliga.
Aí volta pra casa.
A custo, almoça duas colheradas.
- Maria, desconfio que tenho uma doença GRAVE!
- Por que, João?
- Aquele doutor, sabe? Ele parecia nervoso enquanto me examinava... Aposto que ele me escondeu alguma coisa!
- O doutor não ia mentir pra você, não, João. Que tolice, ora!
- Não sei, não, Maria: diz que tem doutor que encobre a verdade pra gente não endoidecer e morrer mais depressa...
- Então vá noutro doutor, homem, assim você tira a dúvida!
No mesmo instante, João pega um ônibus e toca pro hospital do centro.
A fila enorme, como sempre...
Finalmente a vez dele, João se vê na pequena sala branca, o coração aos pulos!
- O que o senhor tem?
- Uma coceira danada, doutora...
- Nos genitais?
- Aqui no joelho...
Gorda e sisuda, a médica dá apenas uma olhadinha rápida e confirma a inexistência de qualquer moléstia.
- Mas, doutora...
- Próximo!
Em casa, João encara a mulher, desesperado:
- Maria, ela mal reparou no meu joelho! É mesmo certo que tenho uma doença MUITO GRAVE!
- E a gora, João???
- Vou noutro doutor!
- Ai, João...!

...

Chegando ao terceiro hospital, já entrando no pátio, João cai estrebuchando...
É socorrido às pressas; infelizmente não sobrevive à fúria selvagem daquela bala perdida que ninguém – ninguém! – soube explicar de onde veio!...

OS HOMENS DIANTE DA DISTANTE AURORA

eu
tu
ele
         somos os homens
diante
da distante
aurora

digerindo a fome e
         o frio
nada temos
nada podemos
exceto cantarolar
músicas
obscuras e tristes

quem somos
de onde viemos
aonde vamos
são interrogações
         que ficaram
para trás

hoje
nos contentamos
em saber
que somos
homens
         e
isso é tudo
ou talvez
quase nada

entretanto
não vivemos por viver
vivemos para viver
e assim
         viveremos
dia após noite
noite após dia
até que a vida
se canse de nós

         de nós
que
insones
xingamos a aurora
como se ela
é que tivesse
perdido
a hora

segunda-feira, 12 de abril de 2010

APROFUNDANDO SHAKESPEARE

Existem mais coisas entre o Céu e a Terra do que supõe a nossa vã Filosofia, escreveu Shakespeare. Tá bom. Mas, hoje em dia, isso não é mais nenhuma novidade...
Conto o que foi!
Fazia alguns meses que eu me mudara praquela cidade maravilhosa, em busca de trabalho. Morava com dois primos – um deles por parte de pai, e o outro por parte de mãe.
Naquela noite – véspera de Natal –, meus priminhos haviam saído pruma festa com uns amigos. Apesar de terem insistido muito pra que eu fosse com eles, eu preferi ficar.
Assim que eles saíram, peguei um Cantina na geladeira e pus uma música antiga – se não me engano dos Fevers. Fiquei bebendo e matutando uma série de coisas quando ouvi baterem na porta. De um pulo, corri e abri. Achava que fosse Lia, uma garota que morava ali perto e com quem eu me dava superbem.
Não era. Era o Jorge.
“Oi, Marcos... Posso entrar?”
“Claro, entra aí”, falei sem atinar com o motivo daquela visita-surpresa.
A um gesto meu, ele sentou-se. Notando meu estranhamento, se justificou: deitara pra dormir e tinha ouvido a música. Como tava sozinho em casa – sua esposa fora passar o Natal com os pais –, pensara em vir papear um instante comigo.
“Aceita um pouco de vinho?”, perguntei.
Ele quis e eu lhe dei um copo.
Ele bebeu um gole, dos grandes; depois, esticando as pernas, falou:
“Eu vi os seus primos saindo...”
“É; festinha com os amigos...”
“Por que você não foi junto?”
“Não gosto dos amigos deles. São tudo gente chata!”
Ele riu:
“E eu, Marcos... Você acha que eu sou chato?”
Gaguejei:
“Não... Eu... Você me parece ser um cara legal...”
Ele tomou outro gole:
“Se de fato acha isso, então por que você mal fala comigo? Faz um tempão que você veio pra cá e, nesse tempo todo, a gente só se falou umas duas ou três vezes, no máximo!”
“É que eu sou um tanto tímido...”, me desculpei.
Ele mirou bem dentro dos meus olhos:
“Não precisa ter vergonha de mim, rapaz. Afinal de contas, você mora do meu lado! Sei que tenho idade quase pra ser seu pai, mas quero ser seu amigo... pro que der e vier!”
Sorri amarelo. Minha cara devia tá vermelha que nem um pimentão.
Pra disfarçar, tive que ir no banheiro:
“Coloque aí o cd que você quiser, eu já venho.”
Quando voltei da toalete, nem sinal do Jorge.
“Ué”, pensei, “onde ele se enfiou?”
Abri a porta, olhei a rua – e nada.
Fechei a porta, me sentei do novo na poltrona – e vi que o vinho acabara.
Vociferei:
“O sacana só veio detonar com minha bebida e deu no pé. Palhaço!”
Procurei um novo cd e tava colocando no som quando, sutilmente, a porta se abriu e o meu vizinho – com um sorrisinho matreiro – adentrou carregando duas garrafas de vinho.
“Fui pegar um negocinho ali pra nós... Você não se importa, não é?”
“Claro que não, fique à vontade!”
Apertei o play e a doçura da música tomou conta do ambiente.
Ele abriu uma garrafa:
“Quem é esta que tá cantando?”
“Madeleine Peiroux. Você gosta?”
Jorge não respondeu. Em vez disso, serviu meu copo e o dele. Ao me entregar o copo, sentou-se de repente do meu lado; até então, ele estivera no outro sofá.
Num impulso, me afastei pra dar espaço...
Ele me segurou firme pelo braço.
“Espere”, eu gemi.
Ele me largou, visivelmente desapontado:
“Você não quer?”
Antítese perfeita de Hamlet e sua penosa irresolução, eu nem pisquei:
“Quero, sim. Vou só apagar a luz...”